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Andrea Goldschmidt

A história do santo que pode nem ter existido de fato

São muitas as especulações sobre a vida do homem que teria se transformado no santo São Jorge. As narrativas sobre a sua vida são antigas, desencontradas e há, inclusive, dúvidas sobre a autenticidade da sua vida.


Se é que ele de fato existiu, a história mais aceita é a de que ele teria nascido em 275 d. C. na Capadócia (atualmente na Turquia) e crescido na região de Lida (atualmente em Israel). Era filho de cristãos (o que naquela época ainda era um motivo de perseguição) e se tornou um soldado do exército Romano.


Segundo essa versão da história, em 303 d. C, o imperador Diocleciano, que tinha ordenado uma perseguição cruel aos cristãos, lançou um decreto dizendo que todo soldado romano deveria fazer sacrifícios aos deuses de Roma.


Jorge, cristão convicto, se recusou e acabou degolado em 23 de abril de 303 d. C.


Logo depois da sua morte surgiram as primeiras referências a milagres, alguns discípulos chegaram a atribuir a ele a ressurreição de 400 pessoas!


E as histórias sobre o santo continuaram surgindo... No século XIII (cerca de 900 anos depois da sua morte), um especialista em santos, o arcebispo italiano Jacopo de Varazze escreveu a Legenda Áurea, uma coletânea de informações sobre santos, escrita em um formato que mistura história e fantasia.

São Jorge foi um dos santos sobre o qual ele escreveu.


No caso dele, a Legenda narra que em Silena (cidade no Norte da África) havia um dragão que atacava constantemente a cidade. Para acalmar a fera, o povo começou a providenciar ovelhas que eram entregues diariamente como oferendas ao dragão. Quando não havia mais ovelhas, começaram a oferecer os jovens da cidade. Por fim, restava apenas a filha do rei para o terrível sacrifício. A princesa foi levada até o local onde seria entregue como oferenda ao dragão. Surge então São Jorge, montado em seu cavalo. A moça explica pra ele a situação. Segundo Jacopo Varezze “Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda trêmula a moça falou: “Fuja meu bom senhor, fuja depressa!”. Jorge montou em seu cavalo, protegeu-se com o sinal da cruz e, com audácia, atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingindo o mostro com força, jogando-o no chão e disse à moça: “coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha!”. Ela assim o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso”. *


Um homem que, com a proteção de Deus, protege os fracos e enfrenta a encarnação do mal, tornou-se logicamente um grande sucesso.


E foi justamente por causa de histórias assim meio exageradas que, na década de 1960, durante o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI disse que o culto a santos com pouca base histórica comprovável (como era o caso de São Jorge) não seria mais obrigatório na Igreja.


Surgiu daí a ideia de que São Jorge teria sido “descanonizado”, mas isso não é verdade. Ele só parou de ser cultuado de forma “oficial”.


A imagem de São Jorge com armadura medieval, montado em um belo cavalo branco, provavelmente também teve origem pelo texto da Legenda Áurea, já que, dada a época em que Jorge teria vivido, essa dificilmente seria a sua indumentária real. Ele provavelmente teria usado uma couraça ou armadura segmentada ou em escamas, em estilo romano.


Também é mais provável que lutasse a pé (e não a cavalo). O cavalo pode ser uma adição medieval, claro, mas pode também estar relacionado à região de origem do Santo, já que “Capadócia” é um nome que provavelmente vem dos antigos hititas e significa “a terra dos belos cavalos”.

Especula-se também que a história do combate com o dragão, pode também ter tido origem na mitologia nórdica, na lenda de Sigurd (da Islândia) que diz que para vingar o pai, morto por um clã adversário, o jovem Sigurd precisava de recursos financeiros. Ele resolve então ir atrás de uma grande quantidade de ouro, guardada por um dragão. Ao matar o dragão e resgatar o grande tesouro, torna-se um grande herói, admirado e invejado pelos homens e cobiçado como consorte pelas mulheres. Além disso, o sangue do dragão dá a ele poderes especiais: sua pele se torna invulnerável, salvo em um único ponto, e ele passa a entender o que os pássaros dizem quando cantam.

Ambas as histórias dão ao “matador de dragão” (seja Jorge ou Sigurd) a imagem de guerreiro destemido e imbatível.


 

No Brasil, São Jorge foi sendo identificado com algumas entidades dos cultos africanos, em especial com o orixá Ogum.


Ogum, filho mais velho de Odùduà, o fundador do Ifé, era um temível guerreiro que brigava sem cessar contra os reinos vizinhos.


Mas além de ser o orixá da guerra, Ogum é também o orixá da metalurgia (dos objetos que, feitos de ferro, facilitam a agricultura e proporcionam uma boa colheita) e isso faz alguns pesquisadores acreditarem que o sincretismo entre São Jorge e Ogum pode não ser exclusivamente de caráter guerreiro.


Em Portugal, por exemplo, São Jorge é o padroeiro dos cuteleiros e dos barbeiros (dos profissionais que trabalham com lâminas).

Assim, essa aproximação entre São Jorge e Ogum pode ter a ver com a guerra e a valentia, mas também com a lâmina que ambos carregam.

 

Seja como for, no dia 23/04, nas igrejas de São Jorge no Rio de janeiro, os fiéis usam vermelho, a cor de Ogum, acendem velas (como fariam tanto na Igreja como no Congá) e, com muita devoção, pedem a interseção do deus guerreiro para suas causas e suas vidas.

 

 

* Varezze, Jacopo. Legenda Áurea: vidas dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 367

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